Golpe na Bolívia é um sinal de alerta para os brasileiros
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Notícias seg, 11 de nov
Arte:
Marcos Correa / PR
Por Alberto
Luis Araújo Silva Filho
Há
um golpe militar pairando sobre o Brasil? Talvez sim, mas o pensamento meramente
eleitoral será incapaz de detê-lo. Afinal, cresce o macarthismo e a aversão às
instituições democráticas como mediadoras do conflito.
Há
algo de muito obscuro na conjuntura política brasileira e que poucos analistas,
ainda que no campo progressista, estão sendo capazes de explicitar. As eleições
de 2018 e a subsequente subida de Bolsonaro ao poder, juntamente às milícias e
aos pastores neopetencostais, não configura uma simples transição de governo.
Essa leitura além de produzir confusão política, gera erros táticos.
O
que se passa desde janeiro de 2019 é a inauguração de um novo regime político
no país, dentro da República fundada pelo golpe militar de 1889. A principal
característica desse novo regime político de tendências bonapartistas é a total
militarização das instituições políticas. O
ocupante do cargo de presidente da República não toma nenhuma decisão
importante sem os filhos (01, 02 e 03) e sem os generais ao lado, como se ainda
estivéssemos no Estado de exceção que vigorou entre 1964 e 1985 – dessa vez com
aspectos familiares que remetem a ideia controversa de patrimonialismo. Não há
hoje nenhum ministério, nenhuma secretaria, nenhum órgão a nível federal que
não conte com ampla penetração de sujeitos fardados em seu interior. Ora, alguém,
talvez um jornalista ingênuo, pergunte qual seria o grande problema em ter esse
tipo de atores dominando o governo, já que o próprio vice-presidente é alguém
que saiu da caserna há pouco tempo.
A
resposta é simples: os militares são um poder de veto importante na política
brasileira. Basta ver a quantidade de quarteladas que permeiam a nossa
história; todas elas com o único intuito de garantir as conveniências das
classes dominantes de então. Sua capacidade de arbitrar as regras do jogo
conforme a sua narrativa de “salvação da pátria” deriva justamente do monopólio
da força que detém, da ampla respeitabilidade que goza como corporação junto à
maioria da sociedade brasileira e da quase inexistência de frentes de
resistência nos quarteis, já que o nacionalismo progressista no Exército foi
basicamente extinto a partir da ditadura com a perseguição, tortura e expulsão
de sargentos e oficiais dissidentes. Quando uma instituição desse tipo se torna
governo é praticamente impossível retirá-la do poder em curto prazo. Suas
próprias contradições é que levam à sua derrocada. Basta para isso notar que
qualquer experiência ditatorial, mesmo as de esquerda, depende da sustentação
de soldados armados. Pela lógica, se conclui que Bolsonaro possui esses
soldados junto a si. Mas não só. Possui coronéis, tenentes, subtenentes,
capitães (como ele próprio), entre outras figuras devidamente
armadas.[1] Isso não indica automaticamente que um autogolpe esteja no
horizonte, mas dado o crescimento da retórica autoritária em terras
verde-amarelas, uma guinada autoritária não pode ser de maneira nenhuma
descartada.
Na
prática o que temos hoje no Brasil é uma gestão de caráter militar. Dessa vez,
chancelada por aproximadamente 58 milhões de brasileiros. Mas esse processo de
militarização do regime político é anterior. Ele começa após a queda de Dilma
Rousseff e a ascensão de Michel Temer, que teve como principais fiadores de seu
governo impopular os ex-militares Raul Jungmann e Sérgio Etchegoyen. Além
disso, foi no seu governo que Dias Toffoli, ao ser nomeado presidente do STF,
colocou um general para ser assessorá-lo em assuntos fundamentais. O que
significam essas movimentações? Entre 1999 e 2016 pode se dizer que houve um
relativo afastamento das Forças Armadas do governo federal. Com o pós-ditadura,
apesar de não ter havido nenhum tipo de justiça de transição que permitisse a
revisão do papel dos militares na vida pública nacional, a extinção do finado
Ministério da Guerra e a criação do Ministério da Defesa pelo governo FHC indicavam
um maior controle dos civis sobre as grandes decisões nacionais, evitando que
caíssemos novamente na retórica golpista que nos constituiu.
A
crise terminal da Nova República, fomentada pela Operação Lava-Jato e a
crescente criminalização da esquerda até pouco tempo no poder, fortaleceram
novamente o discurso dos políticos apodrecidos versus os militares
altruístas e puros que vigorou em 64. Tanto que não só cresceu a adesão a um
golpe militar, como bem mostravam as pesquisas sobre opinião pública a respeito
da percepção dos brasileiros sobre a democracia nos últimos anos [2], como foi
eleito um notório admirador do período de terror que se viveu no Brasil. Em
paralelo a isso, os ventos mudaram no mundo. O ciclo de mobilizações anti
neoliberais no começo da década, dos quais foram palco a Europa, o Oriente
Médio e os EUA, logo deu lugar a um panorama de reação no qual os protagonistas
são os setores “terraplanistas” da política internacional, que tem como líder
maior Donald Trump. Além disso, a tolerância com propostas reformistas diminuiu
substancialmente após a crise global do sistema financeiro em 2008.
Esse
“clima” de crescimento do reacionarismo faz com que os fantasmas de um passado
mal resolvido se manifestem não só aqui, mas em toda a América Latina. O mais
recente episódio é o golpe de Estado na Bolívia que escancara de vez os métodos
de atuação da Internacional de extrema-direita no continente, fortemente
impulsionada pelo imperialismo agressivo dos EUA em aliança com o Brasil. Tais
métodos deixam claro que não há mais nenhuma margem de negociação com projetos
de esquerda na região, mesmo os mais moderados, ao contrário do que aconteceu
nos anos 2000 onde uma série de políticas sociais teve livre entrada na Pátria
Grande. Só para constar, a Bolívia sob Morales vivia um “milagre econômico” com
taxas de crescimento médias de 5% ao ano, fato que de maneira nenhuma satisfez
os grandes capitalistas do país, ativos apoiadores da ruptura com o regime
político. Essa deve ser uma má lembrança para Fernandez que no afã de agradar
os setores conservadores de seu país acaba por se definir como um “liberal
progressista”, o oposto de Cristina, mas que não deixa de ser um inimigo da
direita e, portanto, um alvo da perseguição que nos assola.
O
golpe na Bolívia é um sinal de alerta. Afinal, ali as Forças Armadas se
voltaram contra um governo de esquerda que vinha realizando uma série de
transformações tímidas desde 2006, principalmente em favor dos indígenas. No
caso brasileiro, o petismo, também extremamente tímido, foi despojado por
outros métodos, porém a satanização da figura de Lula, agora solto, permanece e
é retro alimentada diariamente, anulando qualquer possibilidade de retorno do
PT ao poder. A grande ameaça que o bolsonarismo, como novo regime político,
pode impor agora, diz respeito a uma eventual repressão violenta caso uma onda
de protestos seja desencadeada contra a agenda “reformista” (sic) implantada a
partir do Ministério da Economia. Essa onda teria a participação de partidos
políticos de esquerda e centrais sindicais: momento perfeito para mobilizar os
tanques, como já ameaçou o próprio filho do presidente, ou invocar o artigo 142
da Constituição Federal, como já ameaçou o presidente.
O
que se quer é evitar o que está ocorrendo no Chile. Lá, uma direita moderada
resolveu ceder aos manifestantes e convocar uma nova Assembleia Constituinte.
Aqui, uma direita mais radicalizada não pretende se curvar aos progressistas e
democratas. E porque haveria de fazê-lo? Conta com conselheiros militares de
cima a baixo para evitar o colapso. A militarização da República se consolida
com Bolsonaro, mas qualquer um que vier a pegar a faixa futuramente terá que se
submeter à inspeção dos generais. Estamos aqui tratando de uma característica
institucional marcante que agora retorna à cena. Basta lembrar-se do beija-mão
pré-eleições ao qual a própria candidata Manuela D´Ávila do PcdoB se submeteu.
Rapidamente, temos a percepção de que uma velha sina está a nos condenar: a
sina do autoritarismo.
Na
superfície, vivemos um Estado democrático de direito. As liberdades e os
direitos estão supostamente sob garantia. A vida política e o debate público
continuam a todo fervor. Mas e por trás de tudo isso? A democracia está mesmo
sob garantia? Que conversa teve Jair Bolsonaro com o general Villas-Boas às
vésperas do segundo turno das eleições?. Bolsonaro, que mais uma vez recorreu a
alguém influente nas tropas, disse que levará essa conversa ao túmulo. Não é
muito difícil saber do que ela se tratava. Ou alguém crê sinceramente que
Haddad governaria o país caso fosse eleito? Depois do impeachment de 2016 e da
prisão contra Lula? Parando para refletir sobre a natureza da conjuntura, fica
claro o papel dos militares na vida brasileira e latino-americana: garantir a
perpetuação dos interesses norte-americanos por aqui. Sua função social é
trágica.
Nos
acostumamos aos “golpes brancos” nos últimos anos, mas os “golpes” a moda
antiga de maneira alguma foram jogados no lixo. Para resgatarmos a ação no
realismo, é preciso deixar cair por terra as ilusões de que uma retomada em
favor da justiça social se dará de maneira tranquila em 2022. Não se dará. A
dureza da disputa é incômoda, mas está posta. Os tempos mudaram e as formas de
luta devem se adaptar a essas mudanças. Como diz o jurista liberal italiano
Norberto Bobbio o importante é olhar para aquilo que é o segredo, aquilo que
está oculto, os bastidores que não podem ser revelados [3]. Sem estarmos
atentos para as tramas que estão sendo montadas entre Bolsonaro e os militares,
a infantilização continuará a ser a tônica na oposição de esquerda em vigor no
Brasil. Olhemos ao redor.
Alberto Luis Araújo Silva Filho é mestrando em Sociologia pela
Universidade de Brasília. Cientista Político pela Universidade Federal do Piauí
e pesquisador do Grupo de Estudos em Teoria Política Contemporânea (DOXA),
vinculado ao Grupo de Pesquisas sobre Instituições e Políticas Públicas (CNPq).
Notas:
[1] No
interior das polícias civis e militares, a simpatia ao atual governo também é
grande. Mas nesse caso existem alguns núcleos de caráter antifascista, ao
contrário das Forças Armadas.
[2] Além
disso, foram notórias as manifestações a favor de uma “intervenção militar
constitucional” durante a greve dos caminhoneiros no mês de abril de 2018.
[3]
BOBBIO, Norberto. Democracia e Segredo. Editora Unesp: 2015. Sobre
isso: “No Estado despótico, o soberano vê sem ser visto. O ideal de toda forma
de poder oculto é que o soberano, neste caso o governo democrático, que age à
luz do sol, possa ser visto sem poder ver” (p.41)
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