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Javier Trampa e a universalização do golpe

 

Presidente da Argentina, Javier Milei. Foto: Milken Institute

Milei não é o Presidente da República Argentina metido em um golpe. É um golpista metido na Presidência.

 

Carta Capital - Por JOSÉ GUILHERME PEREIRA LEITE - 19.02.2025 – Opinião

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Comecemos por onde se deve: Javier Milei não é o Presidente da República Argentina metido em um golpe. É um golpista metido na Presidência. E quem deve ser interpelado, judicialmente, são também seus eleitores, todos eles, pobres e ricos, altos e baixos, por exercício temerário do direito de voto. O filósofo Paulo Arantes deu a fórmula vocabular – e cômica – do problema em 2016, quando Temer começava seus enredos de Iago contra Dilma Rousseff: sim, é um golpe; sim, são golpistas; mas não pensem mais em golpe no sentido épico-revolucionário do XIX e do XX, com disparos de tanque, fuzil e fumaça. São golpistas rebaixados, chicaneiros, punguistas, batedores de carteira. São golpes de praça, golpistas de comarca.

Isso não explica tudo, mas fornece uma boa pista.

Já faz tempo que o eleitorado trata seu direito ao voto como um detrito. Mas agora estamos diante de um problema novo. A ascensão política desses moleques anfetamínicos – tipo Milei e Marçal – é um fato a ser estudado pela academia. Quem são essas pessoas, quem as patrocina e, sobretudo, quem vota nelas?

Quem vota em Mileis e Marçais está votando em um espelho de suas aspirações pessoais. O jogo é bruto. A tese da inocência tem que desaparecer da esquerda. Boas pessoas não votam nesse tipo de lanceiro por ingenuidade ou falta de orientação. O fenômeno Milei é uma erupção das fantasias primitivas de ganho ilimitado, a ganância convertida em princípio societário, dentro da alma humana.

Daí o seu combate à política. E entenda-se isso na sua simplicidade dramatúrgica, pois Milei existe para duas coisas: primeira delas, usar o Estado para aumentar seus ganhos pessoas, e os ganhos de seus parceiros; segunda: destruir o Estado como antítese eventual dos capitais livres.

Por décadas, desde meados do século XX, forças sociais minimamente civilizadas – apenas minimamente, mas isso não era pouco – entenderam que o Estado (as leis, a regulação e as ações distributivas que podiam ser lançadas a partir do Estado) poderiam “moderar” a animalidade do capitalismo. Animalidade do capitalismo, senhor colunista? Sim. Leiam Charles Dickens. No início do século XIX, as crianças eram mandadas às minas de carvão, por serem pequenas e caberem melhor nos buracos. Nada disso é novo, embora as formas de se organizar a podridão maxi-féla-da-putista sejam sempre inventivas. Mudam os meios, permanece o propósito, piora a escala.

A grande batalha do momento é entre aqueles que pretendem regular um tiquinho da selvageria e aqueles que pretendem abraçá-la de uma vez. A perspectiva da superação ficou para depois de amanhã.

Mas essa não é uma batalha pequena, ou menor.

Observe-se que, no episódio da $LIBRA, o cinismo teatral da personagem principal obceca-se em dizer que “o Estado não desempenhou nenhum papel” na treta e que esta, por sua vez, “é um problema entre [agentes] privados”. Assalte-nos Javier Trampa, mas não nos trate como idiotas: nosso QI é baixo, mas é positivo. Você usou a sua posição e visibilidade de presidente e chefe de Estado para “pastorear” um fluxo de dinheiro na direção de um negócio específico, como um cão que dirige as ovelhas para uma porteira armadilhada. Você não sabe que a Rainha da Inglaterra não pode usar roupas de marca aparente e não pode ser fotografada sequer consumindo algo? Sua moral de rapina é do tamanho do seu cérebro de galinha? Ou, refazendo a pergunta: você acredita mesmo que não tenha envolvido o Estado nessa mixórdia com capitais de bixiguinha ou pretende safar-se das eventuais consequências com gracejos semânticos? “Eu não promovi. Eu divulguei”. Não há circo sem palhaço. Escolham o verbo que quiserem para essas canalhices. Pelo sim, pelo não, o episódio das $LIBRA é uma modelagem perfeita do contemporâneo: especuladores eticamente bastardos maximizando no subsolo, jovens digi-tontos querendo enriquecer em um clique de joystick, achincalhe da política, cinismo retórico e, acima de tudo, uma ausência de régua moral para BBB nenhum botar defeito. “É do jogo, Bial”, todos os que entraram na canoa furada “o fizeram voluntariamente”. Noutras palavras: eu vendo merda, mas só come quem quiser. A fórmula dessa putaria (não há outro termo) já estava nos primórdios da televisão: “Topa tudo por dinheiro” é a máxima perfeita para essa economia do nada.

É preciso, entretanto, recusar a ideia de que sejamos isso: a junção entre política e show-business sórdido é o grande prazer auto-destrutivo das massas e, por isso, elegem-se agora esses vilões brechtianos. No entanto, os gritos de indignação e incômodo são altos e auspiciosos. É uma pena que a esquerda não esteja sabendo representá-los.

 Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

 Por José Guilherme Pereira Leite

Escritor, crítico, ensaísta e professor universitário. É doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo.

Fonte: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/javier-trampa-e-a-universalizacao-do-golpe/?utm_campaign=o_melhor_da_semana_-_22022025&utm_medium=email&utm_source=RD+Station acessado em 22/02/25.

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