Blog de Matheus
Pichonelli - 17 de
abril de 2016
Teve quem mandou beijo pra neta, pra tia e um alô para o pessoal da
maçonaria. Teve quem pediu o fim da CUT. Dos petroleiros (em ato falho, mas
teve). Da educação sexual e do incentivo à troca de sexo para crianças nas
escolas. Da ditadura de esquerda. Do exemplo da Coreia do Norte. Da ditadura
bolivariana. Teve quem votou como “meu pai mandaria votar”.
Teve quem dedicou o voto à filha que vai nascer. Aos corretores de
seguro do Brasil. Ao pai que vai fazer cem anos. E ao pai que detonou o esquema
do mensalão dez anos atrás. “Pela verdade e pela democracia, voto sim”, disse,
com a camisa do Brasil e um adesivo com quatro dedos, Cristiane Brasil, filha
de Roberto Jefferson, condenado a 7 anos de prisão por corrupção e lavagem de
dinheiro.
“Meu pai”, “meu filho”, “minha cidade”, “meu Deus” – nunca antes na
história desse país o pronome possessivo foi tão evocado em um espaço público
como no domingo em que a Câmara dos Deputados decidiu pelo prosseguimento do
impeachment de Dilma Rousseff.
Na festa da supracitada família brasileira, Bolsonaro filho homenageou
os militares de 1964. Bolsonaro pai elogiou o torturador Carlos Brilhante
Ustra, que fazia Dilma Rousseff, torturada na ditadura, tremer. “Perderam em 64
e em 2016”, disse.
E elogiou Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o anfitrião da festa acusado de
manter contas na Suíça com dinheiro desviado na Petrobras.
“Que Deus tenha misericórdia da nação”, disse Cunha, ao anunciar seu
voto.
Como no velho Xou da Xuxa, deputados anunciavam o voto e mandavam abraço
para quem assistia ao vivo pela TV e a Deus – o arquiteto do Universo, segundo
Floriano Pesaro (PSDB-SP) – sobre todas as coisas. Com a Constituição na mão,
pareciam esquecer do mandamento que dizia: “Não tomarás o nome do Senhor teu
Deus em vão.”
Não se sabe quantos deputados que saudaram a família têm relacionamento
extraconjugal, mas cerca de 3 em cada 5 são investigados por algum tipo de
crime, de acordo com a ONG Transparência Brasil, o que explica outro dado: em
2015, apenas 5% dos brasileiros diziam confiar no Congresso, segundo uma
pesquisa da Escola de Direito em São Paulo da FGV.
No dia em que o brasileiro trocou o Domingão do Faustão para assistir à
votação, os deputados decidiram entregar à plateia o que a plateia já tinha
pedido nas pesquisas recentes de opinião de voto: a saída da presidenta Dilma
da Presidência. A maioria, sem muito o que falar sobre querelas jurídicas e
fiscais, falaram em nome de Deus para uma população majoritariamente religiosa,
formada por 64,6% de católicos e 22,2%, de evangélicos.
Isso talvez explique por que o motivo central da votação – as pedaladas
fiscais e os créditos suplementares – quase não tenha sido citado no discurso
da maioria dos parlamentares.
A maioria falava de decência, de valores, da vontade das ruas e da
vontade divina. De vez em quando alguém citava o paradoxo de ter uma sessão
presidida por um denunciado na Lava Jato – ou para justificar o voto “não”, ou
para minimizar o “sim”.
Cunha, apesar do afago de alguns, apanhou tanto quanto Dilma e o PT.
Chegou a ser chamado de gângster e canalha. E ouviu de um colega: “sua hora vai
chegar”.
Se este dia vai chegar não se sabe. Mas, em dupla com o vice-presidente
Michel Temer, maior beneficiário até aqui da queda da titular, Cunha conseguiu
dobrar o governo com folga.
Após 13 anos de governo petista, Dilma assistiu à demandada do PMDB, seu
maior aliado, e de siglas como Pros e PSD, que ajudou a fortalecer com alianças
e ministérios, além de PP, PR e PSB, que pularam do barco ao longo dos últimos
anos, meses e semanas. Dois ex-ministros votaram contra a chefe. No fim, ela
ficou com os votos de seu partido, do PCdoB, do PSOL e algumas sobras de outros
partidos. Foi pouco.
Ao longo da semana, não faltarão análises para explicar o fiasco. Poucas
conseguirão explicar o resultado de domingo se não levar em conta os discursos
proferidos durante a sessão e o perfil do Congresso atual.
Ao fim de 2014, o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (Diap) Antônio Augusto Queiroz, em entrevista à Agência Brasil,
apostava: o aumento de militares, religiosos, ruralistas e outros segmentos
mais identificados com o conservadorismo teria reflexos consideráveis na
relação com o Executivo. “As pessoas não sabem o que fazem as instituições e se
você não tem esse domínio, é trágico", avaliava.
“No caso da Câmara, muitos dos parlamentares que cuidavam da articulação
(para evitar tensões) não estarão na próxima legislatura. Algo como 40% da
‘elite’ do Congresso não estará na próxima legislatura, seja porque não
conseguiram se reeleger ou disputaram outros cargos. Houve uma guinada muito
grande na direção do conservadorismo”, vaticinou.
Os deputados foram legitimamente eleitos, representam os valores da
maioria da população e votaram conforme os humores da opinião pública captadas
pelas ruas e as pesquisas. A radiografia era o de um país desesperançoso em
relação à capacidade da presidenta em reagir.
A esperança de renovação, tão citada durante os discursos, está nas mãos
da dupla Temer e Cunha, sobreviventes de todos os governos (e escândalos) desde
a redemocratização. No movimento de “Diretas Já” às avessas, o Brasil avança em
direção à sua própria teocracia.
Em tempo. Segundo O Estado de S. Paulo, Bruno Araújo
(PSDB-PE), que deu o voto 342 pelo impeachment, é um dos deputados que aparecem
na planilha da Odebrecht na Lava Jato. Já sabíamos desde O Leopardo: às vezes é
preciso mudar tudo para que tudo permaneça como está.
Foto: Antonio Augusto/ Câmara dos Deputados
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