Crise leva 2,7 milhões à
pobreza em seis meses na Argentina
BUENOS
AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - No fim de março, esta repórter foi levar um
saco de lixo a um "basurero", lixão de plástico que há nas ruas de
Buenos Aires. Esses grandes recipientes têm seu conteúdo removido pela
prefeitura no meio da noite. Ao abrir a tampa, no entanto, para a minha
surpresa, havia uma pessoa ali dentro.
"Desculpe,
senhora, já saio", ouvi a voz que saía do meio das sombras e do mau
cheiro.
Constrangida,
dei uns passos para trás. O sujeito então saiu, carregando sacolas de plástico.
Enquanto eu jogava meu lixo fora, Matías, 26, desempregado, rasgava as bolsas e
separava alguns itens.
"Aqui
sempre tem alguma comida", disse, apontando para os dois cafés e uma
popular loja de empanadas na esquina. Separou restos de pizza, um cobertor de
bebê rasgado e outros itens. Meteu tudo em uma mochila e saiu desajeitado, mas
com cara de satisfeito.
Cenas
como essa têm sido comuns na Argentina. Além da corrida aos
"basureros" antes de os caminhões de lixo passarem, há a movimentação
dos que dormem nas ruas em colchões e se aproximam dos supermercados para buscar
algo que alimente a família.
Mas o
empobrecimento da população não atinge só as classes menos favorecidas. O
Unicef lançou recentemente um alerta de que as crianças argentinas estão
mostrando nível inferior de ingestão de proteínas, num país em que antes se
consumia carne diariamente, das favelas às mansões.
Muitas
estão tendo de trocar a antiga dieta por outra, cheia de carboidratos.
"Até uns anos atrás eu fazia bife à milanesa para meus filhos quase todo
dia, e ao menos uma vez por mês reuníamos a família para um 'asado'
[churrasco)", diz Dolores Úrzua, 38, moradora de Quilmes, na periferia de
Buenos Aires. "Agora, comprar carne está muito difícil. O jeito é
substituir por macarrão e, de vez em quando, frango."
Cinemas e
restaurantes estão mais vazios e, nos últimos meses, dois shows internacionais
que ocorreriam no Luna Park, principal local de espetáculos da capital, foram
cancelados pois não foram vendidos ingressos suficientes para pagar a vinda do
artista.
A crise
econômica começou a se agravar no fim do primeiro semestre de 2018, quando o
dólar arrancou em disparada --em um ano, quase duplicou seu valor frente ao
peso.
O
governo, já endividado, teve de acudir a uma linha de crédito do Fundo
Monetário Internacional, que pediu uma política de austeridade mais dura em
contrapartida.
A
política de ajustes de preços, cortando subsídios da era kirchnerista
(2003-2015), que já vinha ocorrendo de modo gradual, começou a se acelerar e a
impactar ainda mais o bolso dos argentinos.
"De
repente, tudo o que um assalariado de classe média baixa ganha, chega, com
sorte, a cobrir gastos de transporte, comida, gás e despesas da casa",
afirma o motorista de Uber Alexis Moreno, 32, que há dois meses perdeu seu
emprego numa fábrica de tecidos.
O
desemprego está em 9,1%, com a taxa de emprego informal beirando os 40% --eram
34% no início da gestão Macri.
Na semana
passada, o Indec, o IBGE argentino, divulgou os números oficiais da pobreza,
que cresceu quase 6 pontos percentuais em um ano. Hoje, 32% da população está
abaixo da linha de pobreza, e 6,7% são considerados indigentes.
Durante o
kirchnerismo, o Indec esteve sob intervenção. Desde 2015 não maquia mais os
dados, e a realidade não é animadora. São 12,9 milhões de pobres e indigentes.
Destes, 2,7 milhões entraram na categoria nos últimos seis meses.
A
inflação acumulada de 2018 foi de 47,6% --e continua aumentando neste ano. Foi
de 2,9% em janeiro a 3,5% em fevereiro. Os economistas preveem que o índice de
março se apresente em torno de 4%.
Com a
pobreza, aumentou também a desigualdade --10% dos lares mais ricos ganham 20
vezes mais que os 10% mais pobres. Uma brecha que aumentou em 3 pontos
percentuais em relação a 2018.
A
obsessão de boa parte da população afetada é o que virá nos próximos meses. Com
o inverno, as casas costumam aumentar o uso de gás e eletricidade para a
calefação.
O gás,
antes subsidiado e que nem sequer era percebido como gasto pela classe média,
agora, de tão caro, se paga em parcelas. Um aumento de 29% nas tarifas está
previsto para o começo do inverno.
Os
chamados "tarifaços", em que se aumentam os preços dos serviços após
a retirada de subsídios, desgastam a popularidade do presidente, hoje em 30%.
Só os "tarifaços" de gás já acumulam mais de 1.000% desde o início da
gestão Macri, em 2015.
Enquanto
isso, o desconforto social vem sendo visto nas ruas, com greves e piquetes. Na
última quinta (4), houve uma manifestação dos sindicatos no centro de Buenos
Aires. Outras categorias também têm se mobilizado.
Os
aposentados pedem a revisão do corte de seus benefícios, feitos na última
reforma da Previdência. Hoje a aposentadoria mínima, com a qual vivem 8 milhões
de idosos no país, é de 10.400 pesos (R$ 918).
Para o
governo argentino, que buscará se reeleger em outubro, "o pior já
passou", frase usada desde o começo do ano pelo presidente Macri e pelo
ministro da Economia, Nicolás Dujovne, apesar de os índices macroeconômicos não
confirmarem isso.
No começo
de seu mandato, Macri disse: "Se no final de minha gestão eu não tiver
reduzido a pobreza, terei falhado". A frase tem sido lembrada por seus
adversários políticos com frequência.
Em sua
defesa, Macri tem dito que os ajustes de hoje darão frutos amanhã. "Sei o
que estamos sofrendo. Temos de aguentar, estou convencido do que estamos
fazendo, de que este é o caminho certo."
Indagado
na semana passada sobre a inflação que não é contida, Macri foi até poético:
"Em nenhum momento há mais escuridão do que no segundo antes do
amanhecer".
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