Major Gabriela Rocha Bernardes falou à ONU News sobre experiência no Sudão, do qual foi evacuada após aumento a violência entre tropas nacionais e paramilitares
12 Julho 2023 Paz e segurança
Major Gabriela Rocha Bernardes falou à ONU News sobre experiência no
país africano, do qual foi evacuada após aumento a violência entre tropas
nacionais e paramilitares; ela lembra o treinamento que recebeu, ainda no
Brasil, e encoraja a participação feminina no terreno.
A boina-azul que operou na
Missão Integrada de Assistência à Transição das Nações Unidas no Sudão,
Unitams, e militar brasileira, Gabriela Rocha Bernardes é a entrevistada deste
12 de julho no Podcast ONU News.
Ela conta que foi evaMacuada
do Sudão após a escalada de violência no país africano desde abril. Os combates
entre tropas do exército e paramilitares já deixaram centenas de mortos e
milhares de deslocados.
Em Nova Iorque, retornando
da missão onde ficou quase um ano, a major do Exército Brasileiro conta sobre
seu treinamento para ir ao terreno e os principais aprendizados que teve em sua
passagem pelo Sudão.
Acompanhe a conversa com
Eleuterio Guevane e Mayra Lopes.
Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=37F9ywlm8BU&t=8s
ON: O mundo vive um novo
conflito. A África vive há cerca de três meses um novo episódio com violência
que não era esperada. A nossa convidada de hoje é uma boina-azul e é militar.
Esteve quando tudo começou, no início de uma missão para estabilizar um país
africano com um longo historial de conflito. Como que você chegou nessa
missão? Qual é seu histórico militar e como foi o processo de se juntar a uma
missão das Nações Unidas?
Gabriela Bernardes: Eu sempre tive vontade de participar de uma missão da ONU ou uma
missão de cunho humanitário, desde que eu estava na faculdade de jornalismo e
eu tive essa oportunidade através do Exército, onde eu sirvo já há mais de 18
anos na área de comunicação social e eu me voluntariei. A gente precisa ser
voluntário para participar do processo seletivo.
Em 2018, eu tive a chance
de fazer o primeiro treinamento no Centro Conjunto de Operações de Paz do
Brasil, Ccopab, e um estágio de idiomas no Centro de Idiomas do Exército.
Fiquei aguardando um convite, uma seleção que acabou acontecendo em 2021, já no
final do ano, quando eu estava onde eu estava também no Ccopab, fazendo um
outro curso específico para preparação de militares do segmento feminino para
missões de paz.
Eu recebi a informação de
que eu tinha sido selecionada para a Unitams, no Sudão. Eu tive mais ou menos
seis meses para me preparar e ser desdobrada no terreno.
ONU News/Abdelmonem Makki - Cartum, no Sudão
ON: Dizem que um jornalista
raramente se emociona, que temos que buscar relatar os fatos. É jornalista, é
militar, esteve lá numa missão de estabilização. Estas lágrimas, o que é que
significam quando fala do Sudão?
GB: Acho que ainda é emoção de dia de ter acabado de sair de lá e de
ter vivido isso por quase um ano. Essa experiência absolutamente
transformadora, com vivências que certamente já estão agregadas na minha vida
pessoal e profissional e vão ficar para sempre na memória. Então, falar do
Sudão ainda é mexer com muita coisa que aconteceu nesse período.
Aconteceram expectativas,
que a gente não pode ter nesse tipo de atividade, e já fica a sugestão, a gente
tem que viver a realidade. Fica uma vivência de uma realidade absoluta,
absolutamente diferente da minha, do meu país, do Brasil, do nosso povo e de
viver aquilo que a gente tem, daquilo que o terreno nos oferece, aquilo que a
realidade nos oferece, seja em termos de conforto, de alimentação, de
expectativas, como eu falei.
Porque a gente vai para viver
uma missão com essa missão, neste caso uma missão política especial, com a
expectativa de fazer parte da transição política do Sudão, que era o que se
esperava e que estava em vias de acontecer. Mas, infelizmente, eu fui
participar de um processo de paz e acabei vivenciando um conflito. Então não
tem como não mexer com a gente.
ON: Aqui em Nova Iorque, a
gente fala muito sobre a participação das mulheres nas missões de paz, nas
missões de estabilização. Um dos processos que você está fazendo que passou foi
justamente esse treinamento específico para as mulheres no Brasil. O que tem de
diferente nesse treinamento para mulheres e como que é de fato estar lá no
campo e ter essa vivência, sendo ainda a minoria no terreno, sendo mulher.
GB: Olha o Brasil, eu falo de carteirinha assim, prepara a gente
muito, tem uma expertise imensa. Já são anos preparando boinas-azuis para
atuarem sob a égide da ONU e eles agora estão trabalhando, por pedido da ONU,
para aumentar esse equilíbrio de gênero. A gente tem essa experiência já e foi
muito importante.
Eu não falo por tudo o que
eu vivi no terreno, mas como o treinamento me preparou. Eu saí do Brasil
extremamente preparada para viver as experiências que eu vivi, inclusive as
experiências de evacuação e de tensão. A gente treina isso lá.
Especificamente para as
mulheres, a gente trabalha não só essa parte de equilíbrio de gênero, como as
dificuldades em ser mulher por estar no terreno também. E a gente aprende algo
muito importante, que é o motivo pelo qual a ONU busca esse equilíbrio de
gênero, que é a gente poder conversar com as mulheres que estão no país e que
vivem aí os efeitos de um conflito, de uma guerra, porque as mulheres são
ainda, infelizmente, usadas como armas de guerra.
A gente aprende lá como
lidar com elas, como conversar com elas, como poder estar no terreno e trazer
essas demandas específicas de mulheres para nossa missão, para nosso canal de
comando, para a gente poder tentar agir em prol dessas mulheres que estão
sofrendo os conflitos. Como parte dos conflitos, elas precisam fazer parte das
soluções. É isso e é isso que a gente fala, é isso que a gente coloca nas
nossas palestras, nas nossas conversas no terreno.
No meu caso, a gente vivia
tanto com militares do governo do Sudão e de grupos armados. Então, a ideia era
mostrar isso para eles de uma maneira que a gente pudesse agregar essas
mulheres ao processo de paz.
Unicef/Ron Haviv - Uma menina de 12 anos (à direita), que vive em um campo para deslocados no estado de Darfur do Norte, no Sudão, diz que foi estuprada por soldados do governo
ON: Que histórias é
que saíram do Sudão, que não sairiam da população contando ao homem
militar?
GB: Infelizmente, a gente ainda vê muitos e rotineiros casos de
violência sexual, da não participação da mulher nos processos, ainda mais de
decisão, de tomada de decisão para aquela comunidade, para aquele grupo. Então,
seja em grupos religiosos, sejam em grupos estudantis. Eu fiquei feliz de
ter esse contato com a Universidade de Al Fashir, no norte de Darfur, onde eu
estava morando, de ver muitas mulheres já podendo estudar, frequentando a
universidade.
Mas elas ainda não estão,
por exemplo, no governo. Elas não estão representando grupos armados. A gente
sabe que elas fazem parte também e é muito importante que isso aconteça. Então
elas ainda sofrem essa violência, essa violência diária. E infelizmente a gente
recebia relatórios de segurança diários com essas, esses casos de violência e
covardias, de não poder, por exemplo, conversar com um homem, de estar sozinha
andando na rua, tinha sempre que está ou era o marido ou era a família. Então
ainda tem essa questão cultural e até mesmo religiosa, de afastar as mulheres,
de não as deixar participar de todos os processos que elas deveriam estar.
ON: Mas durante esse quase
um ano no Sudão, qual foi o grande aprendizado que traz de volta para o Brasil?
Para sua carreira, para a sua vida?
GB: Olha ela, além do orgulho de ter participado de uma missão da ONU
– de ser uma boina-azul, representar o Brasil nesse cenário internacional em
prol da paz que o mundo tanto precisa, em especial nos dias de hoje – o que eu
aprendi muito lá com a convivência, principalmente com o povo do Sudão e também
com os meus colegas de missão, é muito mais tolerância, muito mais respeito,
muito mais humildade e gratidão.
A gente percebe o quanto a
gente já teve e já recebeu na vida da gente. E chegando num país com tantas
necessidades, em que a gente passa falta de luz, falta de gêneros básicos,
falta de água, falta de muitas coisas que nós consideramos básicas e que ainda
não tem. A gente aprende a dar muito valor e ser muito grato por tudo e aprende
até ficar mais calmo, a ver que tantas coisas que a gente reclama, que às vezes
a gente vê que é besteira, que não é isso que nos move.
Tem muito mais coisa nesse
universo que a ONU propicia, que o Brasil está fazendo parte, já que já faz
parte há muitos anos, mas que continua e vem crescendo, inclusive com a
participação de mulheres nas missões. A gente aprende a dar muita gratidão.
A gente vai buscar a paz,
sai no conflito, mas a gente volta com a paz, com a sensação de estar podendo
fazer um mínimo, de fazer a nossa parte aqui. Eu saí de lá mais calma e apesar
de tudo que eu enfrentei, eu saí muito mais feliz.
Eu descobri que a gente tem
que querer muito, porque passar por tudo isso não é fácil. Estar aqui
conversando e falando aqui depois de ter vivido esse processo, fica mais fácil.
Mas eu descobri que é difícil e a gente tem que querer muito.
Quem quer, quem realmente
tem vontade de abrir mão disso tudo e de enfrentar esses desafios: vá, eu digo
vá.
A gente vai naquela expectativa de ajudar e a gente
que volta carregando muito mais exemplos, muito mais coisas boas que eles nos
dão com essa capacidade de viver com o mínimo. Se você tem essa vontade, esse
desejo de encarar qualquer desafio, porque a gente não pode escolher, né? A
gente tem que encarar aquilo que vem e o que vem. Você tem que estar disposta a
viver isso. Então se você realmente quer, vá, porque vale muito a pena.
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