Rio de Janeiro (RJ), 28/10/2025 - Dezenas de corpos
são levados por moradores para a Praça São Lucas, na Penha, zona norte do Rio
de Janeiro. Foto: Tomaz Silva /Agência Brasil
Não há como invocar a expressão ‘Estado Democrático de Direito’ enquanto o mais elementar dos direitos, o de existir, permanece suspenso nas favelas.
Por AMARÍLIS COSTA
Enquanto isso, 132 casas amanhecem mais vazias
no Complexo da Penha. E, nessa máquina de moer gente, morrem também os
policiais — homens pobres, filhos de mulheres que choram do mesmo lado da
trincheira. Não existe vencedor numa guerra em que o povo perde. Sangramos
todos nós. E, ainda assim, o país não parou diante da pilha de corpos. A cena
de guerra não esvaziou o ponto de ônibus. Como diria a canção de Criolo, retomamos
as atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir esta morna
rebeldia.
Criolo, poeta da sobrevivência, escreveu sem
saber que seu refrão seria prenúncio. No Rio de Janeiro, moradores da Penha
transformaram a praça em necrotério improvisado, expondo à luz do dia aquilo
que o genocídio negro institucionalizado que o Estado insiste em varrer para as
sombras. Na madrugada de 29 de outubro de 2025, mais de setenta corpos foram
levados por mãos calejadas até a Praça São Lucas. Corpos de jovens, corpos sem
nome, corpos com documentos no bolso e dignidade arrancada à bala. O governo
contabiliza sessenta e quatro. A Defensoria fala em cento e trinta e dois.
Entre um número e outro, há o abismo das vidas que o Estado decide não contar.
Quando o governador se apressa em declarar
“sucesso” à operação, o verbo não se refere à segurança pública — mas à
manutenção da política de extermínio. É o sucesso de um projeto antigo,
minuciosamente descrito por Ana Flauzina em Corpo Negro Caído no Chão: o
sistema penal como braço operativo do Estado genocida. As mortes nas favelas
não são exceções; são procedimentos, relatórios, índices que alimentam a
indústria da bala, o discurso moralista e a necropolítica. O Estado antinegro
não apenas mata — ele administra a morte, calcula o risco, racionaliza a
ausência. E quando o povo da Penha leva os corpos à praça, realiza um gesto
profundamente subversivo: rompe o pacto de silêncio, restitui humanidade ao
cadáver e denuncia o País.
O nome da ação policial — Operação Contenção — é
um ato falho. Flauzina nos ensina que o racismo é o eixo metodológico do
sistema penal. Eu acrescentaria: é o projeto ontológico do Estado brasileiro.
Enquanto os helicópteros sobrevoam, a democracia racial implode. Enquanto o
governador sorri, o solo absorve o sangue negro, como tem feito há séculos.
Enquanto as câmeras filmam a apreensão de fuzis, as famílias apreensivas choram
a perda do que o Direito não alcança nomear.
Essas mortes não são apenas estatísticas, são
expressões do que denomino dano de anulação existencial. Cada corpo tombado é
uma biografia interrompida pela lógica de um Estado que se reserva o direito de
decidir quem vive e quem morre. A anulação começa antes da morte: na escola
sucateada, na ausência de saneamento, no olhar armado da polícia. O crime não é
a causa, é o pretexto. O corpo negro é o crime em si, o alvo preferencial de um
Estado que naturalizou a sua eliminação.
Não há como invocar a expressão “Estado
Democrático de Direito” enquanto o mais elementar dos direitos, o de existir,
permanece suspenso nas favelas. Sem responsabilização, sem reparação, sem
ruptura, o país seguirá orbitando o abismo moral que ele próprio cavou.
Enquanto o trono da branquitude permanecer intocado, seguiremos lavando copos,
contando corpos e sorrindo o riso amargo da resistência. Porque, como entoa
Criolo, “se fosse pra ter medo dessa estrada, eu não teria há tanto tempo nessa
caminhada”. E é nessa travessia ensanguentada que o Brasil decidirá se quer ser
nação ou necrotério.
Precisamos refletir que a eleição de 2026 se
avizinha, e com ela a urgência de encarar o projeto em curso — aquele que nem
mesmo a ADPF das Favelas conseguiu frear. No trono da justiça, uma cadeira do
Supremo Tribunal Federal permanece vazia, e essa vacância ecoa o anseio
profundo de um país por uma mulher negra naquele espaço de poder.
No Brasil, o verbo existir se conjuga em sangue.
Cada gota derramada grita um nome que o Estado não quer ouvir. No altar profano
do chão da favela, onde repousam os filhos que a nação renega, este sangue
escorre e desenha o mapa real do Brasil - um país que administra a morte com
precisão burocrática e chama isso de política pública.
Nós sobreviventes seguiremos tentando, entre o
choro e o aço, reinventar o verbo existir.
Amarílis Costa
Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade
de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP,
diretora executiva da Rede Liberdade.
Artigo de
opinião. Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-massacre-na-penha-obriga-o-pais-a-escolher/?utm_medium=email&utm_campaign=boletim_diario_-_30102025&utm_source=RD+Station
acesso em 30-10-2025
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