Em votação histórica,
Argentina aprova aborto na Câmara de Deputados
(AP Photo/Jorge Saenz)
SYLVIA
COLOMBO
A lei que permite o aborto até a
14ª semana, apenas por decisão da mulher, teve na madrugada deste dia 14
uma disputa acirrada na Câmara dos Deputados da Argentina.
Saiu dali
aprovada, com 129 a favor, 125 contrários e uma abstenção. Agora, com a
chamada "meia-sanção", o projeto tem de ser aprovado também pelo
Senado, de maioria peronista. O presidente Mauricio Macri se declara pró-vida e
contra a lei, mas reafirmou diversas vezes que, se a legislação passasse pelo
Congresso, não a vetará.
Caso o
rumo siga assim, a Argentina pode passar a ser um dos três países (junto a
Uruguai e Cuba) que permitem o aborto em qualquer circunstância e apenas por
decisão da mãe, nos primeiros estágios da gravidez (varia entre 12 e 14
semanas).
Ainda
assim é pouco, de 3% da população latino-americana que tem direito a esse
recurso, se passaria a 10%, "mas pode haver repercussões em toda a América
Latina por conta da importância da Argentina da região", disse à
reportagem a militante e escritora Claudia Piñeiro.
Quem usou
o argumento do "mapa do atraso" em seu voto foi, ironicamente, um
deputado governista, Fernando Iglesias, que levou um mapa, mostrando que todos
os países ocidentais do norte (Europa e União Europeia) têm legislações de
aborto mais avançadas que os da América Latina. Foi ironicamente aplaudido por
seus arqui-inimigos, os parlamentares da esquerda e do peronismo kirchnerista.
Até
agora, a mulher argentina só pode abortar legalmente em três condições: risco
de vida da mãe, má formação do feto e estupro -com autorização de um
tribunal que confirme o crime. Em outros casos, se a mulher for pega realizando
um aborto clandestino, pode receber uma pena de até quatro anos de prisão.
As
hospitalizações por complicações em tentativas de aborto clandestino são, em
média de 50 mil ao ano, e as mortes, cerca de 60, segundo entidades de direitos
da mulher.
A
maratona de votação durou mais de 20 horas. Em um Congresso com mais de 30% de
representação feminina, houve muitas deputadas, principalmente de regiões mais
humildes afastadas da capital, que se manifestaram contra. Os representantes
das regiões mais pobres insistiram que, além de suas convicções, tampouco têm
como cumprir a medida por deficiências no sistema de saúde.
O
deputado Martín Grande, de Salta, disse que a fila para demora no
atendimento de saúde pública em sua província é de no mínimo seis meses.
"Em Salta, do jeito que está o sistema de saúde, é inviável".
Alguém
lembrou o deputado, no bate-boca do Congresso, que isso também ocorre no
Uruguai, e que o governo manda médicos de Montevidéu para suprir essa carência
ou trasladam a mulher a uma cidade grande se for o caso.
Os
argumentos não saíram muito do embate tradicional: os pró-vida alegando que a
vida começa na concepção, e os pró-escolha, de que se trata de um direito da
mulher.
A
deputada Victoria Donda, do Libres del Sur, foi das mais enfáticas na defesa da
lei e, nos intervalos, foi falar com os indecisos para que decidissem seu voto
em favor da causa.
Em um
momento que o empate parecia não ter resolução, Donda pediu publicamente que o
presidente Macri se pronunciasse. Este, porém, permaneceu na residência
oficial, em Olivos, longe da confusão. Disse, horas antes, que não ia dar
declarações que pudessem intervir nem para um lado nem para outro.
Outro que
votou a favor também de modo surpreendente, foi Máximo Kirchner, filho da
ex-presidente Cristina Kirchner. Apesar de a mãe ter sido sempre contra o
aborto, Máximo se manifestou a favor, e contou uma experiência pessoal baseada
nos abortos naturais pelos quais sua ex-mulher passou. "O aborto é sempre
ruim e traumatizante e não creio que nenhuma mulher opte por isso se não for o
último recurso. Mas a decisão tem de ser delas."
O
peronista não-kirchnerista Felipe Solá afirmou que a lei era uma questão de
saúde pública, porque os abortos continuariam acontecendo. Disse que votaria a
favor.
O
deputado governista Nicolás Massot, contra a legislação, foi acusado pela
oposição de estar prometendo cargos e verbas nos corredores a quem votasse
contra.
Importante
referência do governo na Câmara, a deputada mais votada das últimas eleições e
alinhada a Macri, Elisa Carrió, minimizou o debate. "Este não é um debate
histórico, e sim trivial. Não tenho nada a dizer, vocês conhecem o que
penso". Ela votaria contra.
Tradicionalmente,
na Argentina, a sessão para aprovação de uma lei passa por discursos de 5 a 10
minutos (muitos se excedem), a Câmara de Deputados tem 257 parlamentares. Por
isso toma muito tempo. Apenas no final, vota-se por meio de um painel
eletrônico.
Do lado
de fora do Congresso, manifestantes pró e contra mantiveram vigília quase toda
a noite. Foram apelidados de "onda celeste" (pró-vida) e "onda
verde" (pró-aborto). Pela manhã, restavam poucos da "onda
celeste" mas muitos da "onda verde", composta de muitos jovens,
homens e mulheres, que mantiveram o ânimo o tempo todo. A noite foi fria (no
meio da madrugada, a sensação térmica marcava 3ºC ), e cobertores e mate
quente foram compartilhados por cada grupo.
Os pró
legislação gritavam "aborto seguro, legal e no hospital", enquanto os
contra, "Olelé, olalá, se esta não é a vida, a vida onde está?",
e levaram uma imagem gigante de um ultrassom com um feto de poucas semanas, que
ficou parte da noite num dos lados da praça.
Os que
votaram a favor fizeram muitas menções a um dos médicos mais famosos do país,
René Favaloro (1923-2000), de reputação reconhecida por todos os lados do
espectro político e que dizia que dizia que "legalizar não quer dizer
autorizar que todo mundo faça um aborto só porque é legal, e sim que as pobres
desgraçadas (sic) deste país não caiam no submundo horroroso que as podem levar
a morte."
Houve
alguma confusão no final, por conta de deputados que disseram que seu voto não
apareceu na tela. Depois das correções feitas pelo presidente da casa, Emilio
Monzó, os números seguiram dando vitória à legislação.
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