qua., 1 de setembro de 2021
Um candidato de direita é
esfaqueado num comício de campanha, aparentemente por um lobo solitário, e
remexe o tabuleiro político de uma disputa presidencial.
A história ocorre no Brasil? Não, na Argentina. Há, ainda, outras
semelhanças com a realidade brasileira, uma vez que o episódio dá espaço para a
chegada ao poder de um sombrio grupo de evangélicos que atua com poderosas
influências na Justiça e na alta sociedade.
Essa é a trama da série argentina "Vosso Reino", produção da
Netflix disponível no Brasil e em outros 190 países. A direção é do veterano
Marcelo Piñeyro, de "Plata Quemada" e "Tango Feroz", com
roteiro escrito por ele e pela escritora Claudia Piñeiro, autora de "As
Viúvas das Quintas-Feiras", lançado no Brasil pela editora Alfaguara e
também levado ao cinema. Mesmo com sobrenomes parecidos, os dois não são
parentes.
Em entrevista a este jornal, ambos contaram que vinham debatendo a força
com que a religião vinha ganhando espaço na política, alavancando projetos
autoritários e conservadores, como os de Jeanine Áñez na Bolívia, de Bolsonaro
no Brasil e de Donald Trump nos Estados Unidos.
"Mas, quando começamos a escrever a série, não víamos esse fenômeno
tão forte na Argentina. Pensávamos mais em escrever uma distopia, tipo 'e se os
evangélicos ficarem poderosos em nosso país?'. E o que aconteceu foi que, entre
o tempo de escrever e de começar a rodar, a história virou uma realidade aqui
também", conta Claudia Piñeiro.
De fato, houve um aumento do número de pessoas que se declaram
evangélicas no país, de 9%, em 2008, para 15,3%, em 2019, segundo dados do
Conicet --Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas. Também os
templos dessa religião se disseminaram por várias províncias e pela capital,
Buenos Aires. E se, antes, os pastores que pregavam na televisão local pela
madrugada eram brasileiros falando portunhol, hoje são quase todos argentinos.
"Nossa crítica de modo nenhum tem a ver com os fiéis evangélicos
nem com os de qualquer outra religião. Inclusive na série há evangélicos que
sinceramente creem e atuam fazendo caridade, distribuindo comida, como sabemos
que ocorre de verdade. Hoje há milhares de lugares carentes da Argentina em que
o Estado não chega, mas o religioso, o padre católico ou o pastor evangélico,
sim, chega. Fazem trabalhos nas favelas e nas prisões. A esses, nós tiramos o
chapéu e agradecemos de coração", afirma Piñeiro.
A série deixa claro que o alvo da crítica é a cúpula dessas organizações
e como muitas delas se vinculam com a política e a corrupção. O pastor que se
transforma em candidato à Presidência --interpretado por Diego Peretti-- é
carismático e obscuro, e controla a chegada de bolsas de dinheiro que depois
são escondidas nas lajes do templo. Ele e a mulher, a manipuladora pastora
Elena, papel de Mercedes Morán, comandam, claramente, o que é uma máquina de
fazer fortuna com a fé alheia.
Obviamente, a série provocou reações. Uma organização de igrejas evangélicas , a Aciera --Aliança Cristã das Igrejas Evangélicas da República Argentina-- afirmou que a obra era um insulto à "cultura evangélica da Argentina", pedindo à Netflix que a tirasse do ar. Os autores responderam que "censurar uma ficção é algo medieval".
Segundo Marcelo Piñeyro, embora a religião esteja no centro da trama e
do debate, a crítica que a série faz à corrupção na Justiça tem passado
despercebida. "Isso me incomoda muito. Naturalizamos tanto o fato de não
podermos confiar na Justiça que ver juízes, delegados e promotores corruptos já
não escandaliza mais ninguém. É muito sério ver essa instituição que é o
árbitro da sociedade ter perdido tanto a credibilidade."
Na história, a promotora Roberta Candia, papel de Nancy Dupláa, tenta
investigar o assassinato do candidato e vai ao mesmo tempo revelando os delitos
dos pastores. Porém, um juiz corrupto, vivido por Alejandro Awada, faz de tudo
para abafar o caso e livrar o caminho para que Emilio, papel de Peretti, chegue
ao comando do país.
Também no time dos supostamente honestos estão o advogado Julio Clamens,
vivido por Chino Darín, que assessora a Igreja, Tadeo, papel de Peter Lanzani,
que trabalha como voluntário num orfanato religioso, e Remigio, interpretado
por Nico García, que atua nas prisões e recruta fiéis recém-convertidos.
Sobre a cena da facada, que abre a série, ambos dizem que a escreveram
antes do atentado contra Bolsonaro na cidade mineira de Juiz de Fora em
setembro de 2018, durante a campanha presidencial brasileira. "Quando
vimos que tinha ocorrido de verdade, não podíamos acreditar. Achamos que
tínhamos que filmar rápido a história, porque de distopia ela ia se
transformando em realidade, logo podia virar um documentário", diz
Piñeiro.
O candidato da ficção, que na série morre com a facada, também carrega
uma crítica política da realidade argentina e internacional. Ele é Badajóz,
papel de Daniel Kuzniecka, um empresário novato na política que tenta encontrar
seu espaço depois da crise de 2001, quando o presidente De la Rúa caiu após uma
grave crise econômica e social.
O episódio causou o descrédito das autoridades e representantes locais,
com o famoso grito de guerra "que se vayan todos" --que todos caiam
fora. No caso da Argentina, quem surgiu nesse cenário foi o direitista Mauricio
Macri, também ele um empresário novato na política.
"Fizemos o possível para que não se pudesse identificar pessoas
específicas na série. É possível concluir que é Macri ou não. Deixamos para
quem vê. O que quisemos mostrar é que, na Argentina e no mundo, neste século
21, vários 'outsiders' surgiram e ganharam protagonismo em vários países",
diz Marcelo Piñeyro.
Nesse vazio, acrescenta, "encontraram espaço também, além desses
gestores ditos independentes, as pautas de extrema direita, contra os direitos
humanos, os das mulheres, dos homossexuais". "Em vários países o
defensores dessas pautas se abraçaram à religião e a grupos religiosos
importantes para, juntos, com uma mensagem populista e carismática, chegar ao
poder."
Segundo Claudia Piñeiro, que é também uma ativista feminista e
participou da campanha pela aprovação da lei do aborto, que passou na Argentina
em dezembro do ano passado, "a entrada da religião na política é um
fenômeno perigoso e que tem de ser analisado por todas essas frentes".
"Nas marchas antiaborto que vimos na Argentina, o protagonismo não foi
católico, mas sim evangélico. Não somos contra religiosos estarem na política,
mas sim que a religião paute a política e oprima direitos das mulheres, por
exemplo."
*
VOSSO REINO
Onde: Disponível na Netflix
Classificação: 16 anos
Elenco: Chino Darín, Mercedes Morán e Diego Peretti
Produção: Argentina, 2021
Criação Claudia Piñeiro e Marcelo Piñeyro
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