A crise de abastecimento no Brasil revela quase um século de políticas públicas de transporte privatistas e excludentes
A crise de abastecimento no
Brasil revela quase um século de políticas públicas de transporte privatistas e
excludentes
Há uma
semana todos temos sido expectadores e atores participantes de uma das maiores
crises de abastecimento do período democrático recente.
De
grandes, médias e pequenas cidades, todas encontram-se com seu cotidiano
paralisado e a vida coletiva e individual impedida de transcorrer por conta do
desabastecimento de combustíveis atrelados à cadeia do petróleo à qual o Brasil
encontra-se prisioneiro a quase um século.
A vida
urbana, suas dinâmicas coletivas e individuais foram paralisadas, atividades
educacionais e de saúde canceladas, a população em pleno ‘horário-comercial’
permanece em filas quilométricas de duas, três, cinco horas para abastecer seus
carros particulares que ainda majoritariamente circulam com a ocupação de
apenas uma pessoa.
Multidões nas filas dos postos de gasolina. Foto:
Carl de Souza/AFP
Essa
crise revela muito, para além de outras características da cultura política e
do grau de cidadania do brasileiro, sobre como um país de dimensões
continentais encontra-se refém de si próprio, numa infeliz alusão do feitiço
que se volta contra o feiticeiro.
As
políticas públicas de transporte no Brasil carregam em si o traço da
desigualdade de classe, do compromisso permanente de um sistema político que se
encontra capturado pelos interesses de um capitalismo industrializante e suas
elites familiares e uma visão completamente privatista e excludente do espaço
público em todas as nossas médias e grandes cidades.
Recorrendo
à literatura que narra o surgimento do transporte público urbano, vê-se sua
virada pela alternativa essencialmente fundada no modal rodoviário e no
transporte particular individual ainda nas décadas de 1940 e 1950 do século
passado quando, pelo poder de pressão de montadoras de veículos multinacionais
e chassis de caminhões e ônibus preferencialmente para os mercados de países da
América Latina, hoje em 2018, nos deparamos com uma escolha de política pública
que, sem risco de errar, não promove transporte e mobilidade no sentido
público, mas sim transforma cidadãos e toda uma coletividade em reféns de uma
alternativa ultrapassada e já comprovadamente ineficiente nos contextos da
eficiência e qualidade da mobilidade em níveis mundiais.
As
políticas públicas de transporte no Brasil (e não chamarei aqui de mobilidade,
porque de fato, o termo não se aplica à realidade do que oferecemos enquanto
políticas) desde então pautam-se por um viés de classe. Viés esse que indica
claramente a quem é permitido a circulação em nossas cidades e estradas. A
classe média pujante dos anos 40 e 50 desde então tem sido o principal
público-alvo dessas escolhas políticas, uma vez que é visível os sucessivos e
constantes benefícios fiscais e materiais que lhe são oferecidos como uma prova
do seu poder de consumidores ávidos, sobretudo em períodos de relativa
estabilidade econômica.
Benefícios
fiscais sobretudo quando percebemos o quanto as políticas que favorecem o modal
rodoviário facilitam a vida da classe média possuidora do carro particular. De
modo mais visível e impactante, temos a construção de estradas e rodovias em
ritmo acelerado a partir dos anos 60, ao que parece surpreendente aos olhos de
quem estuda as compensações das externalidades causadas pelo modal rodoviário,
sem nenhuma contrapartida do público que circula por essas estradas e rodovias
diariamente (taxas, pedágios, maiores alíquotas de imposto sobre veículos,
etc).
O mesmo
replica-se no espaço urbano das cidades, onde é possível facilmente encontrar
em cidades como Brasília, por exemplo, número incontáveis de veículos
particulares estacionados em vias públicas, canteiros, gramados, áreas
residenciais, hospitalares, escolares, sem nenhuma contrapartida econômica pelo
uso privado do espaço público. O elemento de classe presente nessa relação se
dá quando à classe média tudo é facilitado para o uso e circulação do
transporte privado enquanto a classe baixa não possui a mesma facilidade, não
participa dessa política e não encontra meios de ser compensada pela classe
média por um desenho de política pública de transporte e uso do espaço público
planejado e definido especificamente para ela.
Nisso
percebe-se, diante da crise do abastecimento que, as atividades da classe
média, mesmo dificultadas por horas em filas de postos de combustíveis ou mais
tempo gasto para atividades corriqueiras, contudo, ainda acontecem. Porque o
modelo de transporte público brasileiro, majoritariamente presente em todas as
cidades acima de 20 mil habitantes, privilegia o recuso ao automóvel
particular, não ao uso do transporte público, que é fundamentalmente dependente
da iniciativa privada – que o controla – e do uso da cadeia de petróleo que a
alimenta.
Falar de
classe quando se discute a pauta de transporte urbano é falar da condição
excludente à que é submetida toda a sociedade no tocante ao desenho da cidade,
ao uso e acesso ao espaço público, a vida urbana, o direito à cidade.
Cidades
fundamentalmente assentadas no modal rodoviário dependente de combustíveis
fósseis comprometem-se, primeiramente (se não unicamente), com os interesses de
uma elite empresarial forjada desde os anos 1930 quando a alternativa
ferroviária (não dependente do petróleo, mas dependente de energia e também
controlada por capital privado internacional) foi desconsiderada em favorecimento
a pequenos empresários de origem familiar, de atuação de certo modo artesanal,
no transporte de passageiros, primeiro interestadual, e num segundo momento, e
hoje a regra do transporte no país, no transporte urbano e coletivo em nossas
cidades e regiões metropolitanas.
Desde
1960 aos dias atuais, o fortalecimento desses grupos empresariais atingiu
níveis que ainda nossas análises econômicas e a própria ciência social ainda
não conseguiram capturar a dimensão, a escala e o poder de influência nos mais variados
ramos da vida pública na atualidade.
Falamos
aqui de grupos empresariais de origem familiar, genuinamente brasileiros,
oriundos de cidades interioranas do país e de origem humilde porém com
habilidade política, que contudo alcançaram posições no capitalismo global
semelhantes a empreendimentos de escala internacional, operando principalmente
em nossos municípios e de modo mais incisivo, nas periferias de grandes
cidades.
A esse
grupo do capital do transporte público no Brasil deve-se o reconhecimento de
sua habilidade empresarial e econômica que hoje aprisiona a maioria dos
projetos e planos de transporte urbano e mobilidade, uma vez que, não há uma
discussão e sequer a possibilidade de se ventilar mudanças no atual padrão
rodoviário de circulação que envolve as grades e médias cidades do país.
Planos de
mobilidade nas principais capitais começaram a surgir após 2012, ano da
aprovação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana que hoje, seis anos após, não
apresentou incremento significante do tempo gasto para acessar o espaço da
cidade, a qualidade e o preço do serviço que é posto essencialmente para
usuários da classe baixa, já que não houve a atração da classe média para o
transporte urbano, como era a ideia inicialmente ventilada.
Desse
modo, o transporte urbano não foi reconfigurado, o acesso ao espaço público não
foi democratizado, reduzindo-se ainda, infelizmente, ao funcionalismo do
atendimento aos interesses do mercado, qual seja, a garantia do deslocamento
até os postos de trabalho.
Ainda,
como característica que se encontra presente em variadas áreas da vida social,
o modelo de transporte urbano brasileiro fundado no modal rodoviário dependente
dos derivados do petróleo age de modo muito eficiente no tocante à continuidade
de um modelo de cidade, de desenvolvimento social e de concepção de vida e
mundo excludentes, ao excluir, por meio da credencial do acesso ao combustível
ou ao carro particular, qualquer possibilidade de concretização de uma
perspectiva ampliada de cidadania e de direito ao espaço público como um espaço
de todos.
A
exclusão é uma característica fundante de nossa sociedade que se apresenta de
modo mais aviltante no tema do transporte quando a dinâmica das classes
desenrola-se sob a segregação e conformação do direito de uns ao acesso amplo e
irrestrito aos espaços e recursos da cidade, sem compensação solidária, ainda
que eminentemente econômica, para aqueles aos quais a benesse de um carro em
sua garagem não foi ainda conferida.
Nesse
mesmo processo de segregação ao espaço público e à cidade encontra-se, como
face da mesma moeda, a presença massiva de um enriquecimento e acumulação
exponenciais dos grupos empresariais de transporte urbano que apresentam, desde
a década de 60 do século passado, como a alternativa imposta à realidade
nacional o transporte por ônibus, controlados por um empresariado que desde o
início fez as vezes do Estado, na definição de linhas, itinerários, horários,
divisão do mercado, conformação de interesses, ingerência e controle sobre a
burocracia, conseguindo desse modo figurar longe de pressões e ameaças do que
poderia representar o controle e a cobrança de padrões mínimos de eficiência e
qualidade por parte da sociedade que o utiliza.
Esse
cenário de desabastecimento de combustíveis derivados do petróleo que impactam
de modo direto a circulação e a mobilidade no espaço urbano e, indiretamente
afeta a vida individual e coletiva sociedade, nos indica a falência de um
modelo de transporte fundado no modal rodoviário de protagonismo ultrapassado,
racionalidade falaciosa e eficiência precária, capaz de submeter um país de
joelhos diante dos interesses que envolvem a recente alteração do modo de
remuneração sobre as operações com petróleo.
Esse erro
– para não chamar de tragédia – de formulação da política de transporte está
prestes a completar seu primeiro século, com exemplos dos mais variados
sentidos que apontam para a sua inviabilidade e necessária alteração.
Sem a
conformação de novos interesses na pauta do transporte urbano e público, que
desafiem seu caráter classista, excludente e concentrado nas mãos dos grupos
empresariais, por meio de uma ampla e atuante ação da sociedade civil,
movimentos sociais e cidadãos em torno do direito à cidade e à vida no espaço
urbano, que gere a proposição de políticas mais amplas e includentes, estaremos
condenados à ampliação do fosso da nossa desigualdade estrutural e moral,
condenando toda uma coletividade à condição de subserviência, interpretando
movimento, circulação, mobilidade, acesso à cidade com pedidos de licença
para passar, não como direitos de cidadania.
Isamara Martins Vasconcelos é Doutoranda em Sociologia
pela Universidade de Brasília
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