Sem
legitimidade, sem voto e sem popularidade, o vice enfrentará, logo, o
descontentamento profundo
por Roberto
Amaral —
publicado 18/05/2016 04h36
Foto: Fabio
Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
Michel
Temer em reunião ministerial
O golpe
de Estado, que se consolida a cada dia, realiza-se mediante a usurpação do
mandato de uma presidente legitimamente eleita, que ninguém crê haver praticado
crime.
Aparentemente
fechando um ciclo, o do desenvolvimentismo nacional-popular, esse
golpe parlamentar-midiático-judicial operado no
Congresso Nacional abre espaço para uma nova fase de conservadorismo,
anti-popular, anti-trabalhista, mediante a instalação de um governo
conservador, comprometido com o que há de mais atrasado na política brasileira.
Uma vez
mais, e talvez ainda não pela última vez, a direita interrompe, a frio, uma experiência
tímida de integrar socialmente os pobres por meio de um projeto de conciliação
de classe, ilusão que dominou o segundo e bom governo Vargas e presidiu o lulismo (um conjunto voluntarioso
de ações ainda carente de teorização); ilusão que esbarrou na renitente
resistência oligárquica a qualquer proposta de mudança, reacionarismo que
aflora com maior virulência nos períodos de crise econômica.
O alienado
apelo à conciliação – no caso dos governos do lulismo, uma reiteração dos erros
que levaram à composição com os militares no ocaso da ditadura – serviu apenas
para deixar mais confuso e errático o projeto de origem na centro-esquerda.
De um
lado o programa do PT, de outro a ‘Carta aos Brasileiros’. De um lado Henrique
Meirelles e Antonio Palocci, de outro a tentativa de promover a
emergência das massas mediante o combate às desigualdades sociais.
Ou, Joaquim Levy recessivista comandando a economia de um
governo ideologicamente comprometido com a inclusão e o desenvolvimentismo. Daí
sua errância pendular.
O que
será esse novo ciclo, qual será sua duração, é impossível desde já prever. É
justo supor, porém, que a crise brasileira – das esquerdas e dos governos de
centro-esquerda – não é um fato isolado, pois dialoga com o avanço da
direita em todo o mundo, e mais particularmente na América do Sul: Argentina,
Peru (a presidência está sendo disputada por dois candidatos conservadores) e
Venezuela (em crise sob todos os aspectos).
No que
nos diz respeito não devem passar sem consideração nosso papel político
regional e nossa presença no cenário internacional como a 7ª economia no
mundo.
A
existência de uma articulação político-militar norte-americana, envolvendo
recursos políticos, materiais e logísticos nas conspirações contra os governos
Vargas (1954) e Jango (1964), está hoje fora de questionamento.
Não
afirmo que a História se repete, mas é preciso registrar as dificuldades dos
EUA de conviverem com uma política externa brasileira “ativa e altiva”, para usarmos
uma feliz expressão de Celso Amorim.
Essas
dificuldades ocorrem desde Jânio Quadros (1961), à exceção de Castelo Branco
(1964-1967) no mandarinato militar, de Fernando Collor (1989-1992) e
de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
A
política externa conheceu seguidos momentos de atrito com a política do
Departamento de Estado, seja no palco multilateral, seja no âmbito regional. O
primeiro deles foi o esvaziamento, pelo Brasil, do projeto da Alca, contraposto
pelo fortalecimento do Mercosul; pela criação da Unasul; do Conselho
de Defesa da América do Sul; da Comunidade de Estados Latino-Americanos e
do Caribe-Celca (primeira tentativa de articular apenas nações
dessas regiões); e pela recusa em transformar nossas Forças
Armadas em milícia contra o narcotráfico.
Especial
destaque cobra a constituição dos BRICS, a abertura para o comércio
com o hemisfério Sul e de particular com a África, e a aliança comercial com a
China, que se transformou em nosso principal parceiro econômico.
Em
síntese, ao restabelecer a política externa independente, fazendo cessar a
dependência levada ao extremo nos governos Collor e FHC, a chamada “era
Lula” adotou um protagonismo jamais bem assimilado.
No plano
estratégico-militar, na sequência da Estratégia Nacional de Defesa, optou pela
parceria com os suecos – que ainda estão fora da OTAN – para a fabricação de
nossos caças supersônicos e associou-se aos franceses para a renovação de nossa
frota de submarinos convencionais e para a construção de nossos futuros
submarinos de propulsão nuclear.
Como as
reações a essa política contribuíram para desestabilizar o governo Dilma
Rousseff é tema por estudar, certamente apenas quando, como ocorreu
relativamente aos eventos que conduziram ao golpe de 1964 e sustentaram a
ditadura, os arquivos dos EUA forem abertos ao público.
Não deve
ser irrelevante o fato de em todos os países tomados pela direita, um dos
primeiros enunciados seja o abandono de políticas externas
independentes, com a consequente e imediata restauração da dependência aos
interesses da geopolítica dos EUA.
Entre nós
não está sendo diferente. Esse servilismo anti-nacional já foi anunciado e para
executá-lo, jogando ao lixo todo e qualquer resquício de política externa
digna, ou simplesmente ‘altiva’, ninguém melhor do que o senador José Serra
(PSDB), saudosista da política de adesão automática aos EUA, adversário
de nossa ação continental, adversário de nosso protagonismo, adversário do
Mercosul, expectante de alguma coisa que lembre a Alca.
José Serra: o servilismo está de
volta
Ninguém
melhor do que ele para negociar a internacionalização, a preço de banana –
aproveitando-se contra nós da queda do preço do barril do petróleo – de
nossas reservas do pré-sal.
O governo
provisório do vice interino é a decorrência lógica das alianças
políticas, institucionais e econômicas que garantiram o golpe. Nacionais e internacionais,
logísticas e financeiras, políticas e judiciais, envolvendo um STF
partidarizado, que oscila entre a judicialização da política e a politização da
Justiça, essas alianças são, sobretudo, de interesses. E cobram seu preço.
Tanto o
Congresso (afinal a deposição de Dilma Rousseff resultou de um golpe
parlamentar) quanto o STF sabem quanto foram decisivos e estão cobrando o
preço devido. O Congresso reivindica ministérios e o STF negocia aumento de
salários e protagonismo, digno de um Poder Moderador, arcaísmo monárquico se
infiltrando em nossa República, sereníssima.
Daí o
aspecto frankensteiniano do novo ministério liliputiano, só de homens, só brancos, só
ricos: contempla os interesses das bancadas da bala, do boi, dos bancos e da
bíblia, o que há de mais primitivo e conservador nas seitas evangélicas
fundamentalistas, um aglomerado de interesses unificados pela decisão de chegar
ao poder a qualquer preço, para nele locupletar-se; ecoa os interesses dos
representantes da velha politica, os filhos e os netos da velha oligarquia
patriarcal e patrimonialista, em plena sintonia com o atraso, e sempre
serviçais do grande capital, da grande propriedade, latifundiários, grileiros e
desmatadores, no geral velhos beneficiários da privatização do
Estado.
À baixa
credibilidade do vice presidente interino, cujo sucesso revela as
possibilidades da mediocridade na política, soma-se a péssima qualidade do ministério
com o qual afronta as esperanças nacionais.
Com jeito
e pretensões de quem veio para ficar, Michel Temer já disse o que pretende: seu
projeto, seu ânimo, sua vontade, seu prazer é servir sem constrangimento ao
retrocesso político-social. A apenas isso se reduz seu programa, seu
projeto, seu discurso.
Será,
enquanto durar (praza aos céus que seja breve), um governo binário,
do não aos interesses nacionais e populares, do sim aos
interesses do capital rentista e da burguesia subsidiada da Avenida Paulista.
Governará
para a dívida e não para a produção; levará a ferro e fogo o ajuste
fiscal anti-povo que sua base de hoje negou à presidente
Dilma Rousseff, e criará novos impostos; para financiar os lucros do
capital, já anunciou, reduzirá os gastos com saúde, educação e inclusão social,
a saber, aquelas despesas que mais de perto dizem respeito às camadas mais
pobres da população.
Governará
contra os pobres e uma de suas primeiras medidas será a alteração da lei da
previdência, aumentando a idade mínima para a aposentadoria, o que só prejudica
os pobres, pois só pobres dependem da previdência e só os pobres ingressam cedo
no mercado de trabalho.
Sem
legitimidade, filho e fruto da traição e da truculência institucional, sem voto
e sem popularidade, o vice governante, pretendendo perpetuar-se no poder,
enfrentará, logo, o descontentamento profundo, e mais cedo do que se poderia
esperar será o alvo da reação popular, aquela mesma que ajudou a mobilizar
contra a presidente Dilma.
O governo
Temer, marcado pela usurpação e pelo perjúrio, é um governo despudoradamente na
contramão da opinião pública e do pronunciamento eleitoral de 2014. Nesse
sentido é uma fraude.
Ilegítimo
de origem, nasce sob a contestação popular. Filho de um golpe parlamentar,
dirigido de fora pela mídia monopolizada, seu ministério é o pagamento de uma
promissória: afinal, o golpe foi perpetrado a partir da Câmara dos Deputados,
um meio pantanoso que reflete a miséria moral de seu comandante (que mesmo
afastado ainda a comanda!), o inefável Eduardo Cunha.
Temer
paga os votos do impeachment e, ao mesmo tempo, buscando uma larga maioria,
tenta se vacinar contra os riscos de um governo sem base parlamentar, como o de
Dilma Rousseff, sem base parlamentar confiável exatamente porque se entregou ao
PMDB, essa empresa de interesses dirigida pelo hoje presidente interino. Fruto
da crise que cevou, o governo provisório que busca a permanência será o
governo da crise permanente.
Trata-se
de um governo exumado do passado.
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