O que leva alguém a comemorar a prisão de Lula?
Os fogos
começaram a estourar mais cedo perto de casa. Por um instante achei que tinham
antecipado a final do Campeonato Paulista, marcada para domingo, entre
Palmeiras e Corinthians.
O que foi
antecipada, soube depois, era a ordem de prisão do juiz Sergio Moro contra o
ex-presidente Lula, que na véspera teve negado o pedido de habeas corpus no
Supremo Tribunal Federal.
Em pouco
tempo, a decisão dominou os assuntos nos grupos de WhatsApp e na timeline do
Facebook e do Twitter.
Parte
daquelas pessoas, muitas delas conhecidas, estava feliz. Feliz, como se tivesse
vencido uma partida de futebol. Os argumentos e provocações a adversários,
inclusive, têm muito do espírito da arquibancada, no qual um ganha quando outro
é eliminado. Só que política é o jogo do acordo, da cessão. De quem perde menos
para avançar, enfim.
Nós, que
tanto gostamos de citar os EUA como modelo, parecemos ignorar um pilar
fundamental do jogo democrático americano, em que, como lembra o doutor em
sociologia Celso Rocha de Barros em artigo deste mês na piauí, o adversário é
combatido até um limite; se um lado for excluído, como em um processo de
impeachment, o outro sabe que as consequências são a perda de algo maior. A
legitimidade.
Por aqui,
pilares são reconstruídos e removidos de acordo com a ocasião. Um vórtice quase
sempre se abre no lugar, e é mais ou menos o que possibilitou, de 2014 para cá,
a ascensão e/ou ressurgimento de figuras estranhas ao corpo democrático.
De tudo o
que é possível dizer ou se perguntar a respeito do julgamento e dos slogans que
ele suscita (“eleição sem Lula é golpe?”, “alguém está acima da lei?”, “alguém
está abaixo?”, “é justo que a lei mude para que ele possa concorrer?”) nada
parece mais instigante do que entender o que leva alguém a COMEMORAR a prisão
de Lula.
Na melhor
das hipóteses, o julgamento foi correto, cumpriu todos os ritos e ritmos
institucionais e levou à prisão não apenas um político, mas uma ideia de fazer
política. A ideia de que um operário poderia alcançar a Presidência e que, de
lá, poderia assumir o combate à fome e à pobreza como pilar, ampliando os
portões de acesso à universidade, à energia elétrica, universalizando o
atendimento público à saúde, garantindo à população mais vulnerável o mínimo do
mínimo com um projeto premiado de transferência de renda. Se isso não funcionou
na prática, não funcionou de modo duradouro, funcionou às custas de alianças
espúrias ou no fim das contas valeu menos do que o interesse de empreiteiras e
aliados de caráter duvidoso, vivemos todos uma farsa e a notícia da prisão é o
sepultamento de uma ilusão. Nada a comemorar, portanto.
Na pior
das hipóteses, Lula foi, como defendem seus aliados, alvo de um sistema
jurídico apressado e atento ao timing político das eleições e da agenda
de interesses poderosos, assumida pelo governo atual, que o ex-presidente
prometia combater em sua volta. A constatação de que a Justiça está a reboque
de outros interesses se não a justiça seria a mais melancólica das conclusões.
De novo, nada a comemorar.
A prisão,
então, representaria o fim da impunidade, o desfecho merecido de quem desafiou
a lei, a Justiça e a inteligência popular até onde pode? Se esse for o motivo
para os rojões, lamento informar que o torcedor está sendo ingênuo.
Meses
atrás, o presidente em exercício recebeu um notório pilantra fora da agenda
oficial para ouvir, sem qualquer correção, como este havia comprado juízes,
procuradores e até o silêncio de um ex-deputado na prisão. O mesmo pilantra
entregou uma mala de dinheiro a um aliado indicado pelo próprio presidente que,
dias depois, conseguiu no muque barrar duas denúncias contra ele no Congresso.
Está tão à vontade no posto que alimenta o sonho de se reeleger.
Até aqui,
o argumento de combate à impunidade serviu apenas como discurso político,
inclusive de quem terá uma campanha inteira para explicar (ou não?) as relações
com um cunhado suspeito, com o operador de seu partido que mantinha R$ 113
milhões na Suíça e com o nome de “Santo” na planilha da Odebrecht. E se amanhã
o Santo da causa também for preso, será um motivo a menos para soltar rojões.
O Brasil
de 2014 não se tornou menos corrupto. Tornou-se mais cínico. E mais claro em
sua ordem até então velada de que o poder não aceita postulantes de origem
operária nem representantes de minorias. Dilma Rousseff foi atacada até cair. O
sucessor acusado de corrupção segue de pé. No caso de Marielle Franco, o breque
ocorreu com quatro tiros em via pública. Perto dali a velha oligarquia
fluminense troca figurinhas do álbum da Copa no plenário.
Esses e
outros episódios servem para mostrar que nossa ideia de representação política
é e será o que sempre foi desde que os portugueses chegaram aqui: uma
brincadeira entre oligarcas. Não seria menos lamentável constatar, como muitos
constataram, que Lula se uniu e se tornou um deles.
Então por
que os rojões? Se nenhuma das hipóteses acima servir como carapuça, talvez a
celebração destas horas que antecedem a prisão tenha alguma elaboração no campo
da psicanálise.
Conheço
muita gente que não vota, não gosta, não aceita Lula como resposta aos anseios
populares que ele diz representar. Normal. Muitos estão cobertos de argumentos
para lá de razoáveis. Mas comemorar, achincalhar, fazer dos grupos de WhatsApp
um painel de ofensa de classe e poluição visual diz mais sobre quem fala do que
sobre quem é falado.
Ao longo
do dia, recebi o vídeo de um cafetão, condenado em 2011 por favorecimento à
prostituição, celebrando a “vitória” e prometendo cerveja grátis em sua casa
noturna (sic) se o ex-presidente fosse morto na prisão.
Também,
no círculo de relacionamento pessoal, observei comentários parecidos de quem me
deve dinheiro há quase dois anos e finge que não é com ele; de quem se gaba por
ter mantido relações sexuais com a empregada quando ela tinha menos de 18 anos;
de alcoólatra que jamais cuidou dos filhos (mas compartilha posts com as tags
“Lula” + “Cachaceiro”); gente que driblou a legislação trabalhista para ferrar
o trabalhador e lucrar mais; gente agressiva e nem um pouco honesta na vida
privada e profissional; gente que não seguraria dois minutos de devassa
policial; gente, enfim.
Nesses
casos a punição – ou a ideia de Justiça baseada na punição – não basta. Lula,
para eles, encarna todos os males de nossos atrasos, e precisa sofrer, pagar,
se possível morrer, como provam os aplausos e silêncios depois que sua caravana
foi alvejada no Sul.
Enquanto
muitos têm na figura combalida do ex-presidente um sonho que morreu ou foi
interrompido, outros têm no seu suplício a sublimação daquilo que são e juram
combater.
rojão1
Pirot. Fogo de artifício formado por tubo de papelão com pólvora, pavio e
punho; FOGUETE
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